Site do escritor Roberto Leon Ponczek

Olhei para um fino espelho de prata e só vi minha imagem, olhei por uma tosca janela e vi o mundo.

Textos


 A enlouquecida aparição de Copacabana

 

Sempre que passava pela Siqueira Campos em frente à praça Serzedelo Correia,  José Perlman via um vulto de uma mulher cujo estado sobrepunha o vegetativo à pétrea rigidez. Uma mortalha branca que lhe alcançava os tornozelos davam - lhe a aparência de uma romeira de uma alguma procissão nos confins nordestinos. Poderia também ser comparada a uma das sertanejas espoliadas em sua marcha rumo a Canudos, seguindo o beato Antônio Conselheiro. Situava-se entre o místico e o fantasmagórico, entre a santidade e o assombro. Sua imobilidade e seu silêncio comoveram e instigaram José que se perguntou  como ela poderia sobreviver no feérico movimento no coração de Copacabana, onde os transeuntes passam apressados sem lhe dar atenção. Sentia por ela pena e pavor em mesma intensidade. Quem afinal era esse misterioso vulto? Talvez fosse apenas uma estátua viva que ganhava sua vida simulando a imobilidade.

A esquina onde ela pairava feito assombração era uma passagem obrigatória para quase todos seus destinos, de sorte que ele a via quase diariamente. A cada dia ela lhe

surgia de duas formas, ora como uma aparição fantasmagórica e ora 

uma estátua viva, completamente imóvel. José nutria por ela, além de medo e compaixão, também uma aguda curiosidade. Como poderia se alimentar se jamais a viu de braços estendidos e olhares de súplica como os demais mendigos que lotam as calçadas de Copacabana? Onde dormia? Pois estava sempre de pé sem nenhum papelão ou algum velho farrapo estendido à guisa de colchão? Ela era diferente de todos eles. Nada pedia, nada falava, apenas se postava imóvel e inerte num canto da calçada por onde transitavam multidões apressadas. Ele pensou várias vezes em abordá-la e , se possível, desvendar algo de sua enigmática existência, como tinha feito com vários outros miseráveis, estátuas vivas e músicos que habitam nas ruas de seu bairro. Antes de fazê-lo perguntou a um ambulante que fazia ponto próximo de onde ela se postava, se tinha ouvido algo acerca da muda aparição. Disse- lhe ele que tinha ouvido falar que a criatura era enfermeira num grande hospital no Ceará quando, ao que tudo indica, adoeceu das faculdades mentais e abandonou a família, marido e filhos, fugindo para o Rio, onde vive nesse estado vegetativo há vários anos. Não soube lhe responder onde dormia, como se alimentava ou fazia suas necessidades básicas. Era de fato um enigma até mesmo para os ambulantes que tudo sabem e observam no entorno de seus pontos de venda. 

Um dia José encheu os bolsos com todas as moedas que achou em casa e que somadas eram suficientes para um café com leite e pão amanteigado na chapa. Foi para a esquina onde ela fazia suas aparições diárias e dela se aproximando, estendeu-lhe a mão, oferecendo- lhe a módica quantia. Sua reação foi quase instantânea, lançou- lhe um olhar assustador e passou a urrar: "sai daqui seu demônio, você veio me atanazar?!" Ele ficou paralisado pelo espanto e com o resto de coragem que conseguiu reunir disse-lhe: " você já foi enfermeira de um grande hospital, né? Quero lhe ajudar a tomar seu café". No entanto, o que lhe disse aumentou sua fúria. Ela contraiu violentamente todos músculos faciais, dando-lhe uma aparência aterradora de uma górgona, com dentes rangentes de ódio, repetiu "demônio vai embora, me deixe em paz"! Depois que José deu- lhe as costas, tentando escapar de sua súbita fúria, passou a ataca-lo , desferindo-lhe seguidamente fortes golpes nas costas, com um pesado saco que carregava na mão e quando ele se virou para defender- se , ela cuspiu uma grossa e viscosa secreção salivar, atigindo-o em cheio no rosto e berrou ainda mais alto: vai embora demônio".

Ele correu para se abrigar numa cafeteria próxima, pedindo para lavar o rosto, passando em seguida depois álcool, pois o catarro dela com forte odor havia se entranhado na sua face.

Teria sido um pesadelo, uma premonição? Não, se sabe, mas parecia ser tão real como todos nas imediações e como a própria estátua viva que, em seguida , voltou para seu canto lá permanecendo inerte como de costume.

Sentou-se num bar próximo, ordenando seguidas doses da mais forte cachaça para relaxar e esquecer o insólito acontecimento. No entanto, ainda pensou por muito tempo: como será possível  um vulto tão inerte  ter subitamente  enlouquecido de fúria?

Saiu do bar  fez o caminho inverso para voltar à sua casa e lá estava ela postada, como uma aparição epifânica, no mesmo local, e, sem qualquer sobressalto, José passou bem próximo de onde estava postada,

mas desta feita ela não esboçou qualquer reação, como se estivesse imersa num profundo transe ritualístico.

Alguns dias depois desse insólito acontecimento, José constatou que o vulto de mortalha branca não estava no local de costume, o que se repetiu durante as semanas subsequentes. 

É assustadoramente paradoxal, mas José admite  que sentiu falta de sua fantasmagórica presença! Como será possível sentir falta de um ser tão inerte, quanto capaz de desmesurada e repentina fúria? Será que ele precisou desesperadamente ser novamente acossado por uma aparição vinda das trevas do reino de Hades?  Seria esta    uma resposta plausível? A verdade é que José nunca mais viu a aparição que passou a habitar sua mente como uma mescla de anjo e um demônio.

 

 

 

Roberto Leon Ponczek
Enviado por Roberto Leon Ponczek em 21/11/2024
Alterado em 17/02/2025


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