EU VI UM JABUTI COMENDO JABUTICABA* (conto) José tinha grande afeição pela filha Mila e, mesmo depois de desfeito seu casamento, continuou convivendo com sua filha quase diariamente até esta completar 18 anos de idade. Passavam juntos 3 dias da semana, além dos fins de semana alternados. José buscava sua filha na escola, almoçavam juntos em casa e à tarde ela fazia seus deveres sob a orientação do pai em física e matemática. Excelente aluna, Mila não precisava que o pai a mandasse estudar, pelo contrário, às vezes era ele que lhe pedia para parar a fim de tomarem um sorvete no Shopping Barra em Salvador que ficava perto da casa de José. Divertiam-se muito ouvindo música, indo a shows e ao cinema juntos. Gostavam dos mesmos estilos musicais e compositores: em MPB ouviam Chico, Caetano, Milton, Tom Jobim, Bosco, Gonzaga, Dominguinhos e no clássico ouviam os grandes mestres como Chopin, Beethoven, Mozart, Bach, Vivaldi dentre outros. E ainda no jazz, adoravam ouvir os grandes improvisadores do bebop, como Parker e Gillespie, Miles, Bill Evans, o extraordinário instrumentista da voz Bobby MC Ferrin, o cantor de jazz ingles Jamie Cullum e tantos outros. A menina e o pai tinham realmente muitas afinidades. José tinha-na, além de filha, como uma amiga e companheira. Mila passou em 1º. Lugar no vestibular da UFBA em Engenharia Ambiental, chegando a cursar por algum tempo este curso, conseguindo logo em seguida uma bolsa de iniciação científica. Tudo ia muito bem quando para o espanto de José ela lhe comunicou que passara no vestibular de Engenharia Química da Unicamp e que iria se mudar para Campinas. - Quando? - perguntou-lhe José sem esconder sua aflição. - Semana que vem - respondeu ela de supetão. Sua resposta foi como receber uma descarga elétrica de centenas de volts.
- Como assim semana que vem? - perguntou-lhe já sem disfarçar sua tristeza e espanto. - Sim, vou semana que vem para Campinas, com minha mãe, para procurar um apartamento compartilhado com algumas colegas. José não aceitou a decisão de sua filha, tentando de todas as formas dissuadi-la da idéia. Foi inútil, Mila estava decidida e ele aprendera que, apesar de sua pouca idade, a determinação da filha era uma marca de sua personalidade, fazendo com que as decisões que tomava fossem irrevogáveis. Mila partiu deixando seu pai sentindo-se solitário e desolado. Instalou-se no apartamento em que vivia a síndrome do ninho vazio, ele andava por suas dependências sem ninguém para compartilhar a sua solidão. O apartamento antes sempre movimentado com a presença de Mila, e de suas colegas que vinham com ela estudar, transformou-se num vazio elefante branco que José não conseguia preencher com sua solitária presença. Os objetos da casa gritavam-lhe em uníssono a presença da amada filha ausente. Ursos de pelúcia ainda ornamentavam a cama intacta da filha. Em certos momentos o silêncio era tão grande que ele conseguia ouvir os gemidos de sua alma. José levou pelo menos um ano para entender que a decisão de sua filha fora acertada embora isso não aplacasse nem um pouco sua tristeza. Quase um ano já se passara sem que ele tivesse muitas noticias de sua filha, quando cerca de um ano depois Mila telefonou-lhe para dizer que viria a Salvador de férias e que passaria com ele uma semana. José ficou eufórico com a notícia. Tão feliz ficou que passou a cantarolar uma música que havia ouvido nas rádios de Salvador: Rasta Pé de Jorge Alfredo e Chico Evangelista, uma dupla de compositores baianos de "axé music" que fez algum sucesso na década de 80, e a música tinha como refrão: Rasta pé é moçada, quando você se requebrar caia por cima de mim, “Eu vi um jabuti comendo jabuticaba”. “Eu vi um jabuti comendo jabuticaba” Preparando-se para receber sua filha, José desceu para fazer compras no antigo supermercado Paes Mendonça, cantarolando sem tirar da cabeça o refrão “eu vi um jabuti comendo jabuticaba” quando para sua surpresa na esquina ele viu um ambulante vendendo pacotes de jabuticabas, fruta muito comum em zonas de Mata Atlântica como São Paulo e Rio de Janeiro, mas muito rara em Salvador. Sem pestanejar comprou um pacote grande de jabuticabas e foi ao supermercado reforçar a geladeira, para a tão aguardada visita de sua filha, mas o refrão “eu vi um jabuti, comendo jabuticaba” não lhe saía da cabeça. Voltou para casa com as compras adquiridas no Paes Mendonça, sem abandonar o pacote de jabuticabas. Mila finalmente chegou a Salvador e foi visitar seu pai por uma semana, o que deixou-o exultante. Planejaram ir a Jauá, uma praia a cerca de 50 km de Salvador, onde ele havia adquirido uma casa e durante a viagem cantarolaram alegremente o refrão “eu vi um jabuti comendo jabuticaba”. A casa era cercada por varandas em lajotas de barro rústico, cobertas por alpendres de telhas de barro vermelho que lhe davam um estilo de fazenda, e ficava no centro de um grande terreno de areia com alguns coqueiros e amendoeiras frondosas que faziam uma boa sombra, amenizando o sol escaldante do verão baiano. Quando chegaram à casa avistaram no meio do quintal de areia, debaixo de uma das amendoeiras, um casal de jabutis, gênero de tartarugas que carregam nas costas uma grande carapaça na forma de uma meia esfera. Nunca antes tinham visto jabutis na casa que era completamente cercada por cercas e muros. Não eram tartarugas marinhas, mas sim jabutis que não são nativos em beira de praia, mas de Mata Atlântica. Mila pegou o saco de jabuticabas e deu aos jabutis que passaram a comê-las com grande apetite. O refrão tornara-se real! Para que tivessem certeza de que não estavam delirando fotografaram os dois animaizinhos comendo o saboroso fruto negro por fora e branco por dentro. Sim, o refrão tão cantado tornara-se real! A foto não os deixava mentir nem pensar que era apenas um sonho. Um refrão improvável de acontecer tinha transposto as fronteiras da imaginação para se tornar real diante deles! Como explicar essa sucessão de dois fatos improváveis: a jabuticaba comprada de um camelô que nunca tinha sido visto antes e o surgimento de dois jabutis que jamais tinham aparecido no quintal da casa de José?! Festejaram a cena cantando ainda mais alto o refrão que se materializara diante deles! Entraram na casa felizes cantando e quando saíram de volta ao quintal os jabutis tinham desaparecido como por encanto! Mila e seu pai os procuraram em toda a extensão do terreno e nem sombra deles ! Sim, eles estavam os aguardando apenas para comer as jabuticabas, concretizando a imensa alegria de Mila e José expressa pelo refrão, para depois simplesmente sumir! Eles existiram apenas por alguns minutos, pelo canto insistente de ambos, até tornarem-se reais objetos de uma metáfora de felicidade! Como explicar a estranha e efêmera aparição dos pequenos répteis? Apenas um jogo de probabilidades pouco prováveis? Ou obra do mero acaso, como pensam os cépticos? Ou ainda um pensamento alegre que se materializou no universo que conspirou para dar significado a um momento de felicidade, como pensam os místicos? Seria uma ação do pensamento sobre a matéria? Ou seria uma sincronicidade, que Carl Jung define como o acontecimento de dois fatos desconexos que se unem para dar sentido à alguma idéia ou vontade? Não se sabe ao certo qual é a resposta, mas, passados muitos anos, Mila se casou e foi viver na França e José saudoso de sua filha vendeu a casa avarandada de Jauá e sabe-se que nunca mais viu jabutis nem comprou jabuticabas. 1 Jabuti ou jaboti é a designação vulgar, utilizada no Brasil, para duas espécies de répteis providos de carapaça, exclusivamente terrestres, nativos da América do Sul, do gênero Chelonoidis, da ordem dos quelônios, da família dos testudinídeos. 2 jabuticaba ou jaboticaba é o fruto da jaboticabeira ou jabuticabeira, uma árvore frutífera brasileira da família das mirtáceas, nativa da Mata Atlântica. Fruto com uma casca preta e polpa branca. *Conto publicado no livro Conversando com Estatuas e outras histórias. Ed.Moura, 2020 Roberto Leon Ponczek
Enviado por Roberto Leon Ponczek em 01/02/2024
Alterado em 01/02/2024 |