Site do escritor Roberto Leon Ponczek

Olhei para um fino espelho de prata e só vi minha imagem, olhei por uma tosca janela e vi o mundo.

Textos


 

VOCÊ TEM MEDO DE DEUS?

(Crônica memorial)

 

Minha mãe Sra. Wanda Goldblum Ponczek (que Deus guarde sua grande alma) era uma mulher bondosa e altruísta, sempre querendo o melhor para mim e de mim. No entanto, como boa yidishe mame[1] era sutilmente autoritária e manipuladora e quase sempre se esquecia de me perguntar o que era bom para mim. Num dia mais frio ou chuvoso, era capaz de me embrulhar todo num papel celofane para que eu não "pegasse um resfriado". Não admitia que eu andasse descalço em casa e profetizava:" você vai se resfriar ou ferir seus pés"- e o pior é que suas profecias sempre se concretizavam... Se eu me recusasse a comer ela mudava de tática e dramatizava fazendo-se de vítima: "preparei essa comida com tanto carinho, como você me faz sofrer". Sra. Wanda era o arquétipo da mãe judia de várias piadas judaicas:

 

 

A mãe italiana quando seu filho não come diz-lhe em tom agressivo: "Se você não comer esse talharim, que fiz para você, eu te mato". Já a mãe judia quando seu filho não quer comer diz-lhe em tom de tragédia: se você não comer esses bolinhos de peixe [2] que fiz especialmente pra você, eu me mato!” Minha querida yidishe mame seguia exatamente esse padrão.

 

 

Quando seus argumentos de convencimento não surtiam o efeito desejado, e eu não a obedecia, ela apelava para o drama e a autocomiseração e quando estes também já não eram suficientes então ela guardava na manga da camisa seu derradeiro e terrível trunfo: “Se você não comer ou não fizer o que te peço (a mãe judia nunca diz eu te ordeno)... vinha então a terrível praga do Egito: “Deus vai te castigar!”

 

Essa ameaça tinha um efeito avassalador em mim. Eu acabava fazendo com relutância o que ela me "pedia", mas sempre com um terrível medo de Deus. Pensamentos cruéis me perseguiam:

 

“Afinal quem é esse tal de "Deus "panóptico que tudo vê e julga? Então Ele perceberá que estou fazendo a contragosto o que me foi "pedido" e poderá ainda assim me castigar! Então não só tenho que fazer o que mamãe me "pede" como ainda tenho que mostrar a Deus (que tudo observa) que estou fazendo com prazer tudo aquilo que não quero fazer! Então não só tenho que comer, mas ainda tenho que fingir que estou adorando comer o gefilte fpara que Deus não me castigue, mas Ele tudo percebe e também perceberá minha dissimulação. Estou condenado a grandes castigos!”

 

Muitos anos depois de minha querida yidische mame ter falecido, tornei-me um estudioso da obra de Baruch Spinoza, um judeu português exilado na Holanda e que me ensinou outro conceito de Deus, bem diferente daquele com o qual minha mãe me assustava: um Deus infinito que se confunde com a própria Natureza e suas leis. “Deus, ou seja, a Natureza, definia Spinoza. Deus seria imanente à natureza e suas supremas leis de transformação e movimento.

 

E este novo conceito de Deus interno e imanente ao universo e que todos as coisas do Univetso  são Seus modos de existir, (inclusive nós humanos), salvou-me da culpa de na infância não querer comer os bolinhos de peixe que minha mãe preparava.

 

Se você quando criança judia ou cristã ouvia coisas do tipo "Se voce continuar fazendo isso, Deus vai te castigar" , não tenha medo de Deus, Ele não “quer” que você faça ou deixe de fazer algo. Vejam o porquê:

 

Pensamento spinozista.

 

1-Se Deus é infinito e possui infinitos atributos infinitos, porque haveria de ter vontade de que algo seja feito ou deixe de ser feito por você? Afinal Ele não controla, mas É todas as possibilidades da Natureza! Inclusive de voce fazer ou não fazer algo. Se voce fez ou não fez algo é porque seguiu a sua própria natureza de modo de ser de Deus – você é um modo de existir Dele.

 

2- A vontade do corpo ou um desejo da mente é um modo de existir de seres finitos, que querem ou desejam algo que ainda não são ou não têm. Como Deus é absolutamente infinito Ele não quer nada nem deseja algo pra Si, caso contrário seria finito e incompleto como nós humanos.

 

Com esses conceitos em mente, hoje em dia não só perdi o medo de ser punido por Deus (apenas, como finito que sou, temo com reverência a sua infinita Infinitude) como passei a adorar comer nas datas sagradas do Judaísmo como o Pessach[3] e o Rosh Há Shana[4], quando nos sentamos todos à mesa, disputo com minha irmã e meus filhos os bolinhos restantes. Minha querida yidische mame sra. Wanda Goldblum Ponczek certamente se orgulharia de mim! Não tenha medo de Deus, Ele não vai te castigar!

 

 

* texto extraído do livro Conversando com Estátuas e outras histórias.

 

 

 

 

 

 

[1] Yidische mame é literalmente a “mãezinha judia” na língua yidische que os judeus falavam no Leste europeu.

 

[2] Prato e típico da culinária judaica consistindo em bolinhos de peixe cozido com uma fatia de cenoura em cima , temperados com raiz forte misturada com beterraba.

 

[3] Pessach é a Pascoa judaica quando os judeus rememoram a saída e libertação do Egito.

 

[4] Rosh Há Shana é o Ano Novo judaico que acontece no equinócio de primavera, aproximadamente no mês de setembro de nosso calendároi

 

Roberto Leon Ponczek
Enviado por Roberto Leon Ponczek em 02/02/2022
Alterado em 27/04/2022
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