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Olhei para um fino espelho de prata e só vi minha imagem, olhei por uma tosca janela e vi o mundo.

Textos


CONVERSANDO COM A ESTÁTUA DE NELSON RODRIGUES NA RUA INHANGÁ

Vindo da Pedra do Leme, onde tive um metafísico encontro com Clarice Lispector, na altura do Copacabana Palace, desvio-me entrando na Rua Rodolfo Dantas, em direção à Rua Barata Ribeiro, para tomar umas cervejas de garrafa num de seus inúmeros botecos, quando na Rua Inhangá, numa pequena praça, pouco maior do que um canteiro, surge diante de mim, ereto e reluzente, em bronze esverdeado, Nelson Rodrigues, que viveu por um tempo nessa oblíqua Rua Inhangá, com toda sua enorme família pernambucana. Morava antes na Aldeia Campista, um pequeno bairro da zona norte espremido entre a Tijuca e o Andaraí.

Pergunto-lhe como foram sendo gestadas suas personagens suburbanas que mesclam em iguais proporções a lascívia e a pudicícia, a imoralidade explícita e a falsa moral das aparências, a canalhice e a santidade:

- O micro cosmos da Aldeia Campista foi um laboratório de minhas personagens femininas, pois ali convivi, ainda menino, com vizinhas gordas e fofoqueiras que tudo observavam da janela; com viúvas tristes inconsoladas; com solteironas amargas, marcadas pela solidão e também com normalistas virgens, algumas recatadas, outras bonitinhas mas ordinárias.

Em seguida, ele me lê com sua voz rouca e cavernosa, algumas frases tiradas de seu maravilhoso livro de crônicas futebolísticas “À sombra das chuteiras imortais”:

"O Fla x Flu surgiu 45 minutos antes do nada”.

“Nada é mais velho do que o jornal de ontem, mais velho até que um papiro do Egito”.

“Toda unanimidade é burra”.

- Nelson quem são os “idiotas da objetividade” e quem é o “Sobrenatural de Almeida”, pergunto-lhe humildemente como um aluno ao mestre.

- São aqueles comentaristas de futebol metidos a sabichões que reduzem uma partida inteira a uma falsa análise de táticas complicadas, e não percebem, em suas mentes crassas, que a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural” – E conclui: “Só os idiotas da objetividade não percebem o que já que estava escrito há milênios”

Pergunto-lhe então sobre o que seria o “complexo de vira-latas”, uma de suas expressões mais polêmicas.

Ele agora assume um tom mais professoral e me explica:

- Quero aludir ao que eu poderia chamar de Complexo de Vira Latas. A inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Na final de 50 éramos superiores aos adversários. E ainda levávamos a vantagem do empate. Mas a seleção ganiu de humildade diante do Uruguai. Jamais foi tão evidente, eu diria mesmo, espetacular, o nosso vira-latismo. Perdemos de maneira abjeta. Os uruguaios nos trataram a pontapés, como se fôssemos vira-latas.

Afasto-me furtivamente, esgueirando-me por entre os velhotes que, na pequena praça, jogavam dominó, e sem conter o riso, ainda o ouço balbuciar outras de suas frases mais polêmicas:

“Invejo a burrice porque é eterna”...

E, com intuito de provocar umas moças que por ali passavam, entoa a frase que deixa as feministas enfurecidas: “Elas gostam de apanhar”.

Finalmente, ele me alerta para os perigos de se atravessar uma rua:

- Com sorte você atravessa o mundo, sem sorte você não atravessa a rua”.

Paro, cerca da Barata Ribeiro esquina com a Rua Mascarenhas de Morais, para um pit stop e abastecer-me de uma boa cerveja, mordiscando os amendoins torradinhos e embrulhados em forma de cone que um ambulante me vende na base de “1 por 3 e 2 por 5”. Aproveito a “promoção” degustando os dois cones de amendoins, colocados em cima da mesa, como se fossem uma rara iguaria.

 

 

 

 

 

Roberto Leon Ponczek
Enviado por Roberto Leon Ponczek em 16/10/2020
Alterado em 30/01/2024
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